A tragédia silenciosa: o drama de 77 milhões de endividados, o grito que o Brasil insiste em ignorar

Mauro Sérgio Mota de Souza*
O Brasil vive hoje um drama que já não pode mais ser ignorado. De acordo com a Confederação Nacional do Comércio, mais de 76% das famílias brasileiras se encontram endividadas, o que representa cerca de 77 milhões de cidadãos que, em maior ou menor grau, têm sua dignidade aprisionada por dívidas. E não se trata apenas de números frios: estamos falando de mães que deixam de comprar o alimento básico, de jovens que interrompem os estudos, de trabalhadores que já não conseguem dormir à noite porque suas rendas estão sequestradas por bancos e financeiras.
A armadilha começa quase sempre com o crédito fácil. O cartão de crédito, presente em praticamente todos os lares, tornou-se um dos maiores vilões. O juro do rotativo, que chega a ultrapassar 400% ao ano, transforma pequenas dívidas em tormentos eternos. É o sistema financeiro se alimentando da vulnerabilidade da população. Para se ter uma ideia, entre os mais pobres, aqueles que vivem com até três salários mínimos, o índice de endividamento chega a quase 80%. Mais da metade da renda mensal dessas famílias já está comprometida apenas com dívidas. O que sobra mal dá para o básico, e a consequência é uma vida marcada pela escassez, pelo medo e pelo constrangimento.
A responsabilidade, é verdade, não pode recair apenas sobre o consumidor. Existe, sem dúvida, a necessidade de educação financeira e de uma mudança cultural sobre o uso do crédito. Mas é inegável que há um componente jurídico e ético que não pode ser desconsiderado. O Código de Defesa do Consumidor é claro ao determinar que o crédito não pode ser ofertado de forma abusiva, sem informação clara e transparente, e sem análise da capacidade de pagamento do tomador. A Súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça reconhece expressamente que a relação entre instituições financeiras e consumidores é regida pelo CDC. Portanto, quando o banco oferece crédito de forma irresponsável, ele incorre em prática abusiva, transferindo ao vulnerável um risco que deveria ser de sua própria atividade.
É preciso compreender que o endividamento não é apenas uma questão econômica, mas um problema de saúde pública. Famílias endividadas convivem com ansiedade, depressão, conflitos conjugais e até casos de suicídio. A vergonha de estar inadimplente corrói a autoestima e cria uma sensação de exclusão social. O cidadão que perde o acesso ao crédito passa a sentir-se invisível, como se tivesse deixado de existir para o mercado e para a sociedade. Não se trata, portanto, de um problema financeiro isolado, mas de um fenômeno social devastador.
O Estado brasileiro precisa assumir esse tema como prioridade nacional. Iniciativas recentes, como o programa Desenrola Brasil, são importantes, mas ainda tímidas diante da dimensão do caos. É urgente que se estabeleçam limites razoáveis para as taxas de juros, que se criem mecanismos eficazes de renegociação acessível e que se fortaleçam os órgãos de defesa do consumidor para enfrentar as práticas predatórias das instituições financeiras. Do contrário, continuaremos a perpetuar um ciclo em que bancos lucram cifras bilionárias enquanto milhões de brasileiros sobrevivem em agonia silenciosa.
Não é admissível que, no país com um dos sistemas financeiros mais lucrativos do mundo, a dignidade do povo seja sacrificada em nome do lucro desenfreado. O Direito não pode fechar os olhos. O Poder Judiciário, o Legislativo e o Executivo têm o dever constitucional de intervir para restaurar o equilíbrio e proteger a parte mais frágil da relação: o consumidor. A justiça social exige isso.
Ignorar esse problema é se conformar com o grito de milhões sufocado nas estatísticas. É preciso dar voz a quem hoje sofre calado. O Brasil deve encarar o endividamento como a tragédia social que é e agir com coragem, inteligência e sensibilidade para transformá-lo em oportunidade de mudança. Somente assim devolveremos a milhões de cidadãos a dignidade, a paz e a esperança.
*Mauro Sérgio Mota de Souza é advogado. Especialista em Direito do Consumidor e Direito Bancário.